“A perda de um campino é um vazio enorme”

Por Nelson Silva Lopes / "O Mirante" (o maior e melhor jornal regional de Portugal)

Fernando Palha, 75 anos, é um dos rostos de uma família nobre ligada às mais profundas tradições ribatejanas. O bisavô Palha Blanco deu nome à praça de toiros de Vila Franca de Xira e o primo foi o fundador do Colete Encarnado no ano em que Fernando Palha nasceu, em 1932. Agricultor, criador de cavalos e de toiros de lide, é gestor da Misericórdia de Vila Franca há 44 anos porque “não seria feliz se não servisse quem precisa”. Nesta entrevista a O MIRANTE confessa que é monárquico, salazarista convicto e detesta a política. Acredita em Deus e tem mais estima e consideração pelos pobres que pelos ricos.
O senhor nasceu no ano do primeiro Colete Encarnado e a festa nasceu nesta casa aqui na Quinta das Areias…
O meu tio José Van Zeller Pereira Palha (era primo direito mas Fernando tratava-o por tio) era presidente da Câmara de Vila Franca e era um homem muito virado para as tradições. A festa foi idealizada aqui. Os toiros vinham da lezíria passavam a linha de caminho de ferro em Povos. Depois iam para o Alto do Borrecho e eram apartados nas Cortes de onde saíam para as ruas da vila e iam até à praça de toiros.Lembro-me que um dia, um toiro subiu a escada do cemitério e matou um burro que estava preso no cemitério.
As primeiras festas eram mais elitistas?
Não. De maneira nenhuma. Toda a gente participava. O convívio era no mercado municipal onde chegaram a cantar Carlos Ramos, Maria Teresa de Noronha, Amália Rodrigues, Celeste Rodrigues, Alfredo Marceneiro e muitos outros amigos da família.
O Colete Encarnado foi o embrião para todas as outras festas ribatejanas?
Vila Franca já tinha sucesso nas esperas da Feira de Outubro e o meu tio pensou dar mais força à festa dos toiros e criou o Colete Encarnado. Depois apareceram outras festas em Coruche, Alcochete, Benavente e por toda a região.
O nome do Colete Encarnado teve a ver com a admiração que o seu tio tinha pelo campino?
Completamente. Fazia-se muito o culto do homem a cavalo. O meu tio tinha uma consideração imensa pelo campino montava a cavalo de calção e meia. Ainda tenho muitas fotografias dos primeiros campinos fardados de calção e meia.
Em 1905, a comitiva Real veio no iate real até ali acima à Vala Real e quando vinha no barco para terra um general disse: “Mas como é que ele trouxe aquela batalhão de cavalaria sem eu ter sido consultado”. Era um “batalhão” de 50 campinos a cavalo fardados com calção e meia e o colete encarnado.
Nessa época o rigor da farda era maior?
Agora é uma mascarada total.
Fica triste com o desvirtuar da figura do campino e por ver tractoristas, mecânicos e pedreiros trajados de campino?
Fico triste, mas é a lógica dos tempos. O campino existia quando havia grandes impérios com grandes propriedades onde havia um conjunto de figuras que tinha no topo o moiral real que era o chefe da parte pecuária assim como o abegão era o chefe da parte agrícola. Estes dois despachavam em comum com o patrão. Eram as bases da pirâmide.
Agora tudo evoluiu e já não há lugar para o campino?
Hoje as grandes manadas desapareceram, as propriedades estão vedadas e os toiros são criados em capoeiras. O campino tem de ser tractorista, mecânico, pedreiro e não conhece o campo. Todos os anos, alguns rapazes vêm-me pedir cavalos emprestados para irem às festas e eu aprecio a sua coragem e a paixão que têm pelo cavalo, pelo barrete e pela espora. Há aí um rapaz que tem qualidades natas para ser um grande campino e está na construção civil.
A figura do campino está condenada a desaparecer?
Infelizmente estou convicto que sim. Há campinos desempregados e não há lugar para os campinos nos dias de hoje. Nas festas ainda aparecem muitos, mas são campinos de desfile e não sabem lidar com os animais e com a dureza do campo. Ainda há duas semanas me vi aflito para ter alguém que me ajudasse a preparar uns toiros para levar para Saragoça.
O senhor tenta adiar o desaparecimento da tradição da campinagem com o seu apoio às festas da região?
É uma paixão que me leva a ajudar a manter estas tradições, mas sei que um dia isto vai acabar. Para conseguirmos manter as festas temos de deixar entrar os marialvas e cavaleiros amadores sem serem fardados de campinos.
Os campinos que vão ao Colete Encarnado recebem dinheiro…
Pois recebem. E com isso desvirtua-se completamente o sentimento que levou o meu tio José Palha a homenageá-los. Os campinos vinham à festa com orgulho com o colete bordado e as meias feitas pela mulher. Vinham por amor à festa. Hoje ganham dinheiro e trazem a família toda. Depois ainda brigam porque querem todos ir para a rua atrás dos toiros.
Não gosta de ver “falsos” campinos?
Vestir uma farda de campino sem o ser é uma verdadeira afronta a quem é verdadeiramente campino. O meu neto já me pediu para o trajar de campino, mas eu disse-lhe que não porque um cortejo não é para ir mascarado. Prefiro que o meu neto vá de calça justa, jaqueta e chapéu. Reparou no tamanho de unhas daquele campino? Um campino não pode ter aquele tamanho de unhas. Se for estender um fio de arame farpado ou aparelhar um cavalo as unhas partem. E nos trabalhos do campo gastam-se.
Sempre que morre um campino é um desgosto para si?
Tive uma pessoa extraordinária que foi o meu pai (António) que me ensinou a respeitar sempre os nossos empregados e os homens mais velhos. Sempre que falecia um empregado da casa o meu pai dizia-me para ir a casa da família acompanhá-los e depois ir ao funeral. Um criado ou um campino não era um servo era um homem que tinha sido criado na casa que crescia connosco.
A última perda foi de Pedro Artilheiro, o “Pedro da Foz”?
O Pedro da Foz era a quarta geração que trabalhava connosco. O primeiro elemento da família dele veio trabalhar com o meu trisavô. Havia uma simbiose muito grande uma ligação afectiva forte e sincera. Nós conhecíamos os problemas de toda a família.
A perda de um campino é um vazio enorme. Trago no porta-luvas do carro as esporas oferecidas por um grande campino Domingos de Sousa “Pitorro” que morreu na Paz de Deus na nossa casa.
Aos 75 anos, o que é que ainda gostaria de fazer?
Olhe meu amigo…morrer com saúde. Já vi o cartão amarelo várias vezes e qualquer dia vem mesmo o vermelho. Terei de partir. É a lei natural da vida.
Tem receio da morte?
A morte faz-me pensar imenso. Sou crente, católico. Mau católico, com certeza, cheio de pecados, mas tenho o conforto de pensar que existe Deus. A morte faz-me muita confusão. Ver desaparecer os amigos, e até os inimigos, causa-me sofrimento.
Gostaria de ter saúde porque vejo nos hospitais e nas misericórdias, pessoas a morrer com um sofrimento inenarrável. Tenho vários amigos a morrer com problemas cancerosos e fere-me o coração.
Tem muitos amigos?
Tenho imensos. Os amigos pobres, os campinos, os empregados e a gente do povo, têm-me dado provas de amizade desinteressada e complacente que me tocam profundamente. Os ricos não têm gratidão nem grandeza de alma.